23.9.10

adiós

I
Ouço o portão se fechando. ele se curva para me olhar mas quando olho pra trás ele já se foi. mantenho os olhos fixos nela. na parede onde dependuramos nossas lembranças. ele continuará ali parado olhando seu próprio rosto envelhecer. tudo ali continua intacto. examino atento dentro de mim e nada falta. a ausência ocupa o seu lugar. acredito que existem certas variações de ordem aleatórias ao pensamento. uma delas é o tempo. o instante presente será memória daqui a pouco. mas o ar e as coisas imóveis no lugar onde as colocamos estão ainda como estarão. e isso não muda em nada a ordem em que aconteceram. sua presença é sentida por isso e pela própria ausência que ocupa o seu lugar. e sorrisos. não mudam paisagens? o sorriso é outra coisa que não muda. alí na parede. entre a pedra e o meu rosto. sentimento de natureza morta. não importa lembrar. estará ali sorrindo pra mim daqui a pouco mesmo sem poder lembrar o que sentia quando sorriu.
esta hora é imortal. mesmo que ninguém se lembre dela. desde o momento em que aconteceu terá existido para sempre. mesmo que ninguém se lembre ela viveu na memória imortal das coisas.
nem uma música. nem um latido. nem um ronco de motor. faz dois mil anos que estou aqui e este silêncio nunca me pareceu tão triste. não quis acordá-lo. dormia tão gostoso. se tiver que ficar aqui nesta imensidão emudecida será necessário enlouquecer – para minha própria segurança. nenhum ruído para me dizer que as coisas serão daqui pra frente como sempre foram. é porque o tempo trai. a lembrança: o som do portão que já se fechou. eu preciso escutá-lo a todo instante. a ferrugem espremendo o ferro. os passos mastigando as pedras. e a voz dizendo que foi só lembrança ruim. ele precisa arrumar o portão que está velho. a lembrança que trai o tempo. agora lembro. lembro do portão se fechando. lembro do sorriso. da foto. a lembrança trai. o som enferrujado da despedida. eu não o culpo. despedir dói. ele não vai lembrar. mas vai doer. vejo da janela que o portão está fechado como sempre esteve. nada mudou. mas o silêncio lembra ao tempo que a lembrança trai. dói. não sei se já disse antes. mas algo em mim dói.

II
A idéia de dizer adeus a alguém é de quase morte. ele precisará viver. parte de você deixa de estar presente. ele mal sentirá minha ausência. por isso prefiro não dizer. prefiro pensar que acabaram as maçãs. pronto. logo estará aqui. ela e um cesto cheio delas. vermelhas como nos contos das fadas. como nos contos em que há uma cesta cheia de memórias e de maçãs. mas não. a memória em poucos segundos terá de reinventar quem sou. pois há uma caixa imensa de maçãs na dispensa que me obriga a não preferir pensamentos sobre contos e cestos. não há fadas na dispensa. e na verdade agora mesmo penso que o que fui com tanta convicção foi só uma invenção. deixarei para trás os restos. as ruinas do tempo continuarão se degradando com o passar dos dias. e aqui eu permaneço pra sempre. traindo a memória e sendo traído por ela. na medida em que envelheço o tempo a lembrança escurece. é noite. a parede permanece pregada na memória e as fotos nela penduradas são as mesmas e continuam sorrindo. ainda não lembro o motivo. mas não importa. elas continuarão sorrindo alí amanhã pela manhã. boa noite. e lá será mais fácil não lembrar de hoje.
III
A distância dos corpos faz com que a idéia de que alguém de carne e osso tenha estado aqui deixe de ter existido algum dia. hoje a cama parece maior. sinto falta de alguma coisa mas não consigo entender o que é. a lembrança acusa qualquer coisa ligada a imaginação. ele teve um sonho agitado. sonhou ruim. a lembrança pressupõe alguma coisa perdida no passado. a imaginação não lembra o que é. o tempo se existe pode esquecer de lembrar. neste caso a imaginação trai a lembrança. e eu percebo agora o que é das coisas sem fim. percebo que esqueci. vaguei aflito pelos cômodos da casa como quem desperta e não se lembra o que sonhou. não conseguia lembrar nem se tinha sonhado algum dia. já ouvi dizer que os sonhos são como pontes entre os dias. e hoje como não me lembrava do que havia sonhado me sentia preso em mim mesmo dentro de hoje. a memória não conseguia percorrer pela ponte. e assim sem poder atravessar os dias não consegui lembrar.
o grande mistério da vida parecia ter se banalizado numa via de mão única. nada do que havia aqui tinha origem. tudo apontava para o acontecimento presente que ia e ia se estendia mais um pouco e ia mais adiante até o futuro. mas como ir sem saber de onde? não entendia o porquê. mas não consegui tirar os olhos daquela parede. aquelas fotos sorrindo pareciam testemunhar algo. um som de ferugem arranhava meus ouvidos. mas não sabia se vinham de onde ou de lugar nenhum. e um adeus entalado no pescoço não quereria dizer nada. ele se acostumará logo. penso que seria uma questão de tempo até me acostumar com isso. essa sensação de estar sozinho no tempo. sozinho comigo mesmo. por onde eu passava me observava como se estivesse atado na sombra dos meus pés. quando se fechava a porta do quarto lá estava eu cerrado à mim mesmo. não podia me sentir tão só do que acompanhando alguém como eu. mal lembrava de onde me conhecia. sei que estive lá e aqui desde que me percebi. ontem chorei de saudades dele. por instantes o rangido enferrujado do portão parou. e o silêncio me entristeceu amargamente ameaçando minha higiene mental.
havia uma possibilidade de passar por aquilo sem desequilíbrios. era só me sujeitar ao tempo e a sua corja de agiotas e cafetões. mas há misérias sob as quais nossos olhos pousam no início pela vocação em admirar o terrível e o belo. depois passa-se a crer possível uma mudança entre o observador e o objeto observado. era por certo bela a tentação a de me perder dentro de mim mesmo para nunca mais. e era terrível perceber que cabia a mim escolher entre as maravilhas do mundo subterrâneo e as contradições de uma vida exemplar e controlável. o portão voltava repentinamente seus gemidos aos ouvidos. e isso me acalmava. meu equilíbrio dependia disso. um ranger metálico que harmonizava os sorrisos fotográficos naquela pedra.
e lá estavam todos os dentes. os olhos semicerrados. o tempo estancado numa moldura fora de época. e a pergunta inevitável. à quem pertenciam.
IV
Olho pela fresta da janela e acuso a mim mesmo de ter deixado de habitar o estranho mundo das coisas lá fora. mas quando vejo a massa bípede de homens e mulheres calçando grossas camadas de vícios e virtudes penso que a melhor maneira de manter intacta a imagem de mim mesmo é ficar aqui. me recolher sob o som imemorável da ferrugem. e resistir as últimas degradações da memória. ao menos não me esqueceria de mim mesmo abandonando-me as ações frívolas dos que se ocupam em se ocupar com as coisas do mundo. decidi que o portão rangendo os dentes era como o meu próprio nome. impossível de esquecer. meu corpo era o templo intacto da pedra diante de mim sustentando sorrisos que não me pertenciam. e assim corpo e nome mantinham minha identidade. prova última da minha existência. todo o resto já tinha se esvaído. em mim apenas o esforço em não viver experiência alguma. apenas a atitude esmagadora de negar os pensamentos que pudessem me preencher com novas lembranças. agora faltava pouco. sim. logo nos reencontraríamos. assim não deixaria de existir. já que tudo já havia sido esquecido.
havia cantigas da infância que me visitavam com certa freqüencia. eram elas aquelas melodias assassinas cheias de imagens que me queriam pra si. me queriam levar a um lugar que eu não queria ser levado. queriam habitar o meu tempo meu pensamento minha memória. queriam me separar do meu corpo. era um rítmo impiedoso de ciranda que ameaçava os rangidos enferrujados da lembrança. corri desesperado em fuga pelo corredor onde o portão enferrujava e abraçado às suas lanças chorei feito menino. empurrei-o num movimento contínuo ouvindo-o falar o meu nome. rangia feliz. era o meu nome. eu sou este som rangido. a infância não levaria o meu nome. ela me queria portão à fora em direção aos jardins das infâncias mortas para cavalgar comigo nos antigos carrosséis da memória. voltei ofegante onde os sorrisos me pregavam o corpo com medo que a ciranda os tivesse levado. e lá estavam. a pedra na memória. sorrindo. sempre. por um descuido poderia esquecer-me ali. precisava me manter atento. pendurado na pedra fria. e deixando de escutar o ferro espremido deixaria de me lembrar. era preciso manter-me intacto na memória das coisas. expulsar qualquer pensamento ou coisa que me impedisse de ouvir e ver o que eu era agora. jamais alguém conseguiu permanecer no tempo presente por tanto tempo quanto eu permanecia. as coisas ali não eram esquecidas. não eram lembradas mas não importavam tampouco. era ali que eu sentia que devia permanecer por tempo interminado. era dali que era necessário continuar. ali me guardava em memória. quantas coisas novas ele viveu. que um dia ela se lembre de mim.



V
Antes do fim deste dia eu teria mil motivos pra jurar que nunca tinha estado ali antes. nem mesmo um pensamento sobre mim ou sobre o mundo poderia me acusar de tê-lo imaginado. eu deixaria de existir no mesmo instante em que provasse isso para mim mesmo. já havia me convencido que antes de hoje não houve nada. é inevitável voltar. ocupar o que me falta. mas também não pertenço mais ao meu próprio passado. já não podia lutar contra os novos pensamentos. não conseguia manter o tempo ao lado da parede sorrindo ferrugens e inventando memórias. os dias acusavam o esquecimento. a morte das coisas. há novas coisas pra guardar na lembrança. só assim. pregaria minhas recordações ao lado daquele quadro de imagens alegres. e a lembrança sonora ficaria em mim. para sempre intacta. ele ficará mais contente que eu. algo meu ficou lá longe. entre uma despedida e outra. preguei-me na memória imortal. o silêncio tomou conta de tudo. as cores embranqueceram aos poucos toda a textura da casa. e o calor do corpo rompia as frestas da janela e me esfriava prazerosamente. senti-me pela última vez com os olhos gelados. um rangido no portão. ainda dorme? olho para as janelas cerradas. um último ruído. o som enferrujado da despedida. é real. a porta se abre. seus olhos se fechavam pra sempre. uma voz dizia. eu não o culpo. despedir dói. ele não vai lembrar. mas vai doer.

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