... e a Beleza então será como a marca de um ferro quente na carne de nossa Quimera
14.4.11
de Plano Sequência
Um minuto para fecharem os portões. Estou com as entradas da semana passada. Arrisco que ninguém notará. Mergulho no fundo de um precipício cheio de nomes e vozes e presenças irreconhecíveis, mas de alguma forma tudo é muito familiar. Uma flecha pontiaquíles me perfura no meio passo de um caminho que eu não escolhi. Não queria ver esse filme na semana passada. Nem desejo vê-lo agora. Se perceberem o bilhete antigo?, tenho dois, é possível que depois de uma desculposa desculpa distraída o segundo bilhete nem seja conferido. Desconfiemos da nossa própria vontade de vez em quando; para nossa própria segurança. Fica aqui uma pergunta: por que ver esse filme agora? Não possuo a resposta. O segundo bilhete: foi por ele que eu quase assisti a um filme que não queria, foi por ele que eu não assisti a filme nenhum, e é por ele que eu devo assistí-lo agora. Tudo muito simples. Se o filme for ruim... Eu sei que não vou gostar do filme. Bem, não preciso ficar até o fim. Afinal, estou só, e estou onde quero. Seria mais fácil e menos constrangedor se não precisasse fazer isso, mas há alguma coisa lá dentro daquela sala que precisa ser resolvida. Cânticos e feras lunares com luzesdiamantadas do céu perpendicularão um pequeno pedaço do destino, as três fiandeiras miraculosas do destino estarão lá, mijando-se umas nas outras, na tela do cinema e em nossas cabeças. Fechem essa maldita porta antes que eu entre nessa sala. Vagabundos ociosos e namoradinhas com freios de mão estarão lá também enfeitando o cenário desta gesta. Posso entrar, me sentar alí calmamente, e dormir durante o todo o filme. Não. Também isso seria perigoso demais. Ficarei aqui então corajosamente prestes a entrar, e esperarei honradamente que eles fechem os portões antes que eu consiga entrar. Mas eles não fecharão essa porta nunca! É preciso entrar. Sem mais rodeios. Um milhão de centopéias me conduzem a sala de projeção, de onde já posso ouvir os gritos desesperados dos que estão lá, imagino eles acorrentados em suas cadeiras engolindo quilos de hiroshimilhosbrancos socados à força goela abaixo pelos Cérberos-lanterninhas. O Cântico dos cânticos esfaqueando nossos ouvidos com pomadas rejuvenescedoras viscosamente besuntadas em nossas caras pálidas, os olhos estáticos buscando o ponto de fuga daquela renascença do inferno, baratas correndo pelas nossas gengivas, e ferozes rinocerontes de braços tortos socorrendo os velhos que ao menor clarão engolem suas dentaduras. Se houvesse uma única razão, apenas uma simples e tola que fosse, eu me deixaria ficar aqui tranquilamente com a tampa do crânio de minha cabeça entre as pernas esperando essas lesmas cósmicas sugarem meu cérebro e regurgitarem seus planos-sequência, sugando e regurgitando, sugando e regurgitando, sugando e regurgitando, até que finalmente terminasse a película, e então nós a guardaríamos dentro de uma dessas latas de metal de shernobyl e sairíamos com ela embaixo do braço abraçados a uma teta, que foi também sugada e regurgitada durante todo o filme, e no encontro com o ar do mundo, o ar plúmbeo e generoso dos carros, desceríamos a pé e descalços sob o sol desértico dos trópicos. Incandescentes e fritos, mas tranquilos e regurgitados, descansaríamos felizes esta noite em lençóis limpos abraçados a uma TetaGarbo e sonharíamos felizes o filme que realmente gostaríamos que tivesse sido filmado, o filme que realmente queríamos ter assistido. Mas... Não. Também isso seria perigoso demais.